Como perdemos o rabo

Entendendo a mutação que nos roubou a cauda

Hermes Schmitz

O rabo – cauda, ou cola, como quiserem chamar – é uma estrutura comum, encontrada em quase todos os vertebrados. Trata-se de um prolongamento da coluna vertebral após a cintura pélvica, que pode ter várias funções: um órgão de equilíbrio, estabilizando a locomoção, de comunicação (como um cachorro abanando o rabo), um espanta-moscas (como em vacas e cavalos) ou porta-enfeites (como em aves com penas super exibidas). Uma das funções mais fantásticas, sem dúvida, é a que ocorre em vários macacos, nos quais a cauda é prênsil e serve como um quinto membro, permitindo, por exemplo, agarrar-se em galhos ou segurar as crianças ou as sacolas do mercado enquanto as mãos podem ficar disponíveis para segurar ao mesmo tempo ainda outras coisas ou tentar encontrar a chave e inseri-la na fechadura. A evolução, entretanto, esta estraga-prazeres, privou nós humanos de todas essas facilidades.

guepardo correndo
guepardo correndo
macaco-aranho pendurado com a cauda
macaco-aranho pendurado com a cauda

A cauda é elemento comum na anatomia de vertebrados, com várias funções, como equilíbrio na corrida do guepardo, um quinto membro no macaco-aranha e comunicação em cães.

Imagens: Wilson et al. (2013), Nature / Henrietta Grimm (Pinterest) / br.ifunny.co

Nós humanos e todos os nossos parentes próximos – chimpanzés, gorilas, orangotangos e gibões – os chamados hominoides ou grandes macacos, somos seres estranhos, pois ao contrário de quase todos os outros macacos e outros vertebrados, nós não temos cauda – ou temos apenas um vestígio dela, o chamado cóccix, que além de nos fazer passar vergonha pela dificuldade de pronunciar essa palavra serve só para aumentar nossa humilhação com uma dor horrível quando o batemos ao cair de bunda (apesar de anatomistas insistirem que serve como local de inserção de músculos).

Perdemos o rabo. Como? Por que? Uma das grandes questões da humanidade começa a ser respondida agora que temos genomas de várias espécies de macacos sequenciados, o que nos permite buscar o que pode haver de diferente em nossos genes para que nossos ancestrais tenham perdido a cauda.

A partir da comparação entre estes genomas, um grupo de cientistas (Xia et al., 2024) encontrou algo diferente no gene TBXT dos grandes macacos sem cauda quando comparados com os demais. Já era conhecido que mutações neste gene em outros animais levam à má formação ou ausência de cauda. Um dos casos mais conhecidos é o que ocorre na raça de gatos Manx (ou manês). Estes gatos são heterozigotos para este gene, ou seja, possuem uma cópia “normal” do gene e uma cópia do gene mutante que leva à ausência de cauda. É notável que os gatos homozigotos para o gene mutante normalmente são abortados no útero por problemas do desenvolvimento embrionário, principalmente da medula espinhal.

íntros, éxons e splicing
íntros, éxons e splicing
fator de transcrição
fator de transcrição

Um gene é formado por íntrons e éxons. Após a transcrição em RNA, os íntrons são removidos, em um processo chamado splicing, restando apenas os éxons para a síntese proteica.

Imagem: modificada de socratic.org

Nos primatas não-hominoides, ou seja, com cauda, existe uma sequência Alu dentro do íntron imediatamente anterior ao éxon 6. Sequências Alu são pequenas sequências de DNA (cerca de 300 pares de bases de nucleotídeos) repetidas muitas vezes (mais de 1 milhão) nos genomas de primatas. Estas sequências são um tipo de elemento transponível, ou seja, sequências de DNA que possuem a capacidade de se “transpor”, de se replicar e se mover de uma região do genoma para outra. Por isso, elas estão relacionadas à origem de mutações, como é o caso daquela que pode ter levado à perda da cauda nos macacos hominoides (incluindo nós humanos). Nestes primatas, além desta sequência Alu antes do éxon 6 do gene TBXT, existe uma segunda sequência Alu após o éxon 6. O interessante é que esta segunda sequência está em posição invertida em relação àquela que se encontra antes do éxon 6. Isto terá consequências interessantes no RNA.

Como o RNA é uma fita simples de nucleotídeos, as duas sequências Alu invertidas do RNA transcrito se pareiam por complementaridade uma com a outra, formando uma pequena região de fita dupla e uma alça, dentro da qual fica “aprisionado” o éxon 6. O resultado disso é que durante o processo de splicing, ou seja, de remoção dos íntrons, há duas versões possíveis de RNA resultantes e, consequentemente, dois tipos de proteínas. Uma delas é a que mantém o éxon 6 e outra em que este éxon acaba sendo removido junto com os dois íntrons adjacentes. A isso chamamos de splicing alternativo. Ou seja, de um mesmo gene, neste caso o TBXT, é possível produzir duas moléculas de RNA e duas proteínas diferentes, neste caso, uma a partir de todos os éxons, e outra sem o éxon 6. Em macacos hominoides, sem cauda e com duas sequências Alu invertidas no gene, as duas versões são produzidas, enquanto em macacos não-hominoides, com cauda e apenas uma sequência Alu no gene, apenas a versão completa é produzida.

Em todos os hominoides, os grandes macacos sem cauda, incluindo humanos, o gene TBXT possui um elemento Alu adicional e invertido após o éxon 6. Estas duas sequências Alu invertidas podem se parear no RNA, aprisionando o éxon 6 que pode acabar sendo removido. Isto leva à realização de um splicing alternativo, ou seja, duas versões de RNAm e de proteína são produzidos a partir do mesmo gene: uma versão completa, com todos os éxons, e uma versão reduzida, sem o éxon 6. Primatas não-hominoides possuem apenas um elemento Alu, produzem apenas a versão completa do RNA e desenvolvem a cauda normalmente.

Imagem: modificada de Konkel & Casanova (2024), Nature.

Isto foi verificado experimentalmente em cultura de células embrionárias humanas (que expressam as duas formas de RNA) e de camundongos (que expressam apenas a versão completa). Também se verificou que células humanas geneticamente modificadas em que foram removidas ambas as sequências Alu (por CRISPR), expressam apenas a versão completa de RNA, evidenciando o papel de tais sequências no splicing alternativo.

A relação entre esta mutação que gerou uma segunda sequência Alu no gene TBXT e a perda da cauda também foi verificada experimentalmente em linhagens de camundongos geneticamente modificadas. Camundongos que expressam apenas a versão completa do RNA desenvolvem a cauda normalmente. Já camundongos modificados para realizar o splicing alternativo e expressar ambas as versões do RNA nascem sem cauda ou com cauda reduzida. No entanto, camundongos modificados para expressar apenas a versão reduzida do RNA, faltando o éxon 6, são inviáveis e morrem antes de nascer.

Outra observação interessante é que parte dos camundongos modificados de forma a realizarem um splicing alternativo do gene TBXT semelhante ao dos hominoides, além de nascerem sem cauda, apresentam defeitos na formação do tubo neural. Defeitos semelhantes também ocorrem em cerca de 1 a cada 1.000 bebês humanos nascidos vivos. Isto sugere que esta mutação e a perda da cauda nos ancestrais dos hominoides 25 milhões de anos atrás teve um custo que impacta a saúde humana até hoje.

A mutação que levou à inserção de um elemento Alu adicional e invertido no gene TBXT parece ter sido um evento chave na perda da cauda em hominoides, tendo ocorrido há cerca de 25 milhões de anos, quando se estima que viveu o ancestral comum dos hominoides, o que também é sustentado por fósseis como o de Ekembo nyanzae, de cerca de 20 milhões de anos, um dos mais antigos hominoides, sem cauda.

Imagens: modificada de Xia et al. (2024), Nature / hominides.com

Em resumo, tudo isto sugere um cenário evolutivo plausível para a perda da cauda nos macacos hominoides. Os ancestrais primatas possuíam apenas uma sequência Alu no íntron anterior ao éxon 6 do gene TBXT, condição que todos os macacos não hominoides com cauda possuem até hoje. Mas há cerca de 25 milhões de anos, uma mutação no ancestral comum dos hominoides originou uma segunda sequência Alu, invertida em relação à primeira, após o éxon 6 do gene TBXT. Isto resultou em um splicing alternativo levando à produção de duas proteínas diferentes a partir do mesmo gene, afetando o desenvolvimento e levando à perda da cauda, condição herdada por todos seus descendentes atuais: gibões, orangotangos, gorilas, chimpanzés e humanos. Tal cenário é sustentado por fósseis como os de Proconsul e Ekembo, que viveram na África por volta de 20 milhões de anos atrás e também não possuíam cauda, sendo provavelmente alguns dos mais antigos hominoides.

chimpanzé com as mãos na cabeça
chimpanzé com as mãos na cabeça

Hermes José Schmitz

Professor da UNILA e coordenador do Clube da Evolução.

Publicado em 16 de julho de 2024.

Em vertebrados, a cauda é a porção posterior da coluna vertebral. Nos humanos, ela é reduzida a uma estrutura chamada cóccix. A perda da cauda é condição compartilhada pelos primatas hominoides - humanos, chimpanzés, gorilas, orangotangos e gibões.

Imagens: ortopedianews.com / modificada de Xia et al. (2024), Nature

gato Manx
gato Manx
gato Manx
gato Manx

Gatos da raça Manx são heterozigotos para uma mutação no gene TBXT, e possuem cauda curta ou ausente. O mesmo gene está envolvido na perda da cauda em primatas hominoides.

Imagens: vetsend.co.uk / cats.com

O que há de diferente no gene TBXT dos grandes macacos hominoides? Em primeiro lugar, há que se considerar que o gene TBXT codifica um fator de transcrição, ou seja, uma proteína que controla a transcrição de outros genes. No caso do TBXT, esta proteína atua durante o desenvolvimento embrionário, portanto, versões diferentes desta proteína afetam de forma diferente o desenvolvimento. Em segundo lugar, há que se considerar que um gene é formado por sequências chamadas de íntrons e éxons, intercaladas. Quando o DNA é transcrito em RNA, tanto íntrons quanto éxons são transcritos. Mas após a transcrição, os íntrons são removidos e é este RNA resultante contendo apenas os éxons que é traduzido em proteínas. A este processo de remoção dos íntrons chamamos de splicing.

splicing alternativo do gene TBXT em hominoides
splicing alternativo do gene TBXT em hominoides
camundongos com e sem cauda
camundongos com e sem cauda

Camundongos geneticamente modificados de forma a realizarem o splicing alternativo do gene TBXT como em hominoides, ou seja, produzindo duas versões do RNA, completo e sem o éxon 6, também nascem com cauda reduzida ou ausente. Camundongos que produzem apenas a versão completa do RNA, desenvolvem a cauda normalmente.

Imagem: modificada de Xia et al. (2024), Nature.

cenário evolutivo da perda da cauda
cenário evolutivo da perda da cauda
fóssil de Ekembo nyanzae
fóssil de Ekembo nyanzae

Ok, mas então essa mutação ocorreu lá no nosso tatara-tatara-25-milhões-de-anos-avô. Mas como ou por que a evolução preservou esta mutação? Nos serviu de alguma coisa? Bom, aí há duas hipóteses: que sim e que não.

A hipótese que sim, ou seja, a hipótese adaptativa, interpreta que a perda da cauda pode ter sido uma vantagem na evolução da nossa peculiar forma de andar, ou seja, sobre duas pernas – o bipedalismo. Entretanto, esta visão ainda encontra dificuldades. Por exemplo, em alguns macacos com cauda, como o macaco-prego (Sapajus libidinosus), a cauda parece ajudar a manter a postura durante a locomoção bípede enquanto carregam objetos com as mãos. Por outro lado, nossos parentes hominoides sem cauda não possuem uma locomoção bípede especializada como a nossa: apesar de serem capazes de andar em duas pernas, o modo preferencial de locomoção é sobre os quatro membros. Um fato notável é que tanto os hominoides como outro grupo de primatas distantemente relacionado, mas que também não possuem cauda, os lóris, são escaladores lentos, que confiam mais na força de agarre do que em velocidade e equilíbrio durante a locomoção nas árvores, dispensando então uma estrutura de estabilização e equilíbrio como a cauda. Assim, é possível que a perda da cauda tenha tido outra função e apenas bem mais tarde na evolução possa ter trazido alguma vantagem para a locomoção bípede.

macacos-pregos sustentando-se em duas pernas
macacos-pregos sustentando-se em duas pernas
chimpanzés caminhando sobre os quatro membros
chimpanzés caminhando sobre os quatro membros

A perda da cauda nos primatas hominoides é comumente interpretada como uma adaptação ao bipedalismo. Entretanto, alguns macacos também usam a cauda para estabilização na locomoção bípede, como os macacos-prego, especialmente quando têm as mãos ocupadas com um objeto, como pedras. Além disso, os demais hominoides atuais, excetuando humanos, embora possam caminhar sobre duas pernas, caminham preferencialmente sobre os quatro membros. Outro primata, distantemente relacionado, o lóris-vagaroso, também perdeu a cauda. Entretanto, este animal não é bípede, sendo um quadrúpede arborícola de movimentos lentos.

Imagens: Jornal da USP / yellowzebrasafaris.com / ifaw.org

Mas ainda não se pode descartar uma hipótese alternativa: a de que a perda da cauda não tenha tido, ao menos inicialmente, nenhum significado adaptativo. Simplesmente a mutação ocorreu e todos nós hominoides somos descendentes deste mutante. No passado os ancestrais hominoides talvez tivessem populações pequenas, como muitos hominoides atualmente. O contexto de origem dos hominoides, possivelmente na África Oriental, um ambiente tectonicamente ativo, com constantes mudanças geográficas quanto à distribuição de vulcões, vales, lagos e rios, pode ter facilitado o isolamento de populações. Assim, a mutação que levou à perda da cauda pode ter sido preservada por deriva genética em uma população então pequena, mas que mais tarde se tornaria ancestral de todos os hominoides.

Embora o porquê de esta mutação ter sido preservada ainda seja motivo de dúvidas, podemos compreender que a perda da cauda na nossa linhagem aparentemente não foi um processo gradual no sentido morfológico, ou seja, uma diminuição paulatina no tamanho da cauda até sua total perda, e sim uma perda “repentina”, ainda que mutações adicionais possam ter refinado a nova anatomia. No entanto, basta uma pequena mutação genética, que agora percebemos que parece envolver um elemento transponível em um gene de um fator de transcrição, para que um indivíduo nasça sem a cauda e também tenha filhos sem cauda e, com o passar das gerações, isto está presente em toda a população e seus descendentes, como nós.

Para saber mais:

Veja também a versão em post deste texto nos nossos Drops de Evolução: Por que perdemos a cauda?

Xia et al. (2024). On the genetic basis of tail-loss evolution in humans and apes. Nature, 626: 1042-1048 https://doi.org/10.1038/s41586-024-07095-8

Konkel & Casanova (2024). Mobile DNA explains why humans don’t have tails. Nature, 626: 958-959.

Gutsick Gibon: Why we apes lose our tails? (Youtube)

cachorro abanando o rabo
cachorro abanando o rabo

Um fator de transcrição é uma proteína que controla a transcrição de outros genes, ligando-se a uma porção específica de DNA, mediando a ligação da RNA-polimerase.

Imagem: modificada de pngwing

lóris-vagaroso
lóris-vagaroso